O Direito em Augusto dos Anjos: entre a poética do sofrimento e a sombra da lei

Marcelo Navarro RIBEIRO DANTAS
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP
Professor Titular da UnB e Emérito da Uninove
Ministro do STJ

Preâmbulo: o poeta e o abismo

Poucos autores brasileiros provocam reações tão extremadas quanto Augusto dos Anjos. Há quem o admire como um visionário da dor humana, quem o rejeite por seu vocabulário “científico” (assim, entre aspas mesmo, porque algumas das palavras rejeitadas não são exatamente da ciência; apenas são expressões inusitadas); mas também existe quem o idolatre como profeta sombrio; e há, sobretudo, os que o leem com a perplexidade de quem encara um espelho rachado: cada fenda devolve um fragmento da miséria humana.

Sua obra é um território onde a Biologia se mistura à Metafísica, onde a Moral tropeça na Anatomia, onde Deus e vermes disputam a eternidade. É natural, portanto, que questões jurídicas — culpa, responsabilidade, expiação, punição, exclusão social, violência, pecado, propriedade, corpo — orbitem continuamente sua poesia. No entanto, a crítica jurídica raramente examinou esses versos como testemunho moral de uma época.

Este breve ensaio procura fazê-lo: ler o Direito que pulsa nas entranhas da poesia augustiana, sobretudo nos poemas adiante transcritos, começando por uma reflexão sobre A Árvore da Serra — talvez o mais enigmático de seus sonetos, e daí partindo para outros de seus poemas nos quais se escondem temas jurídicos.

Mas antes, uma breve síntese biográfica e literária.

1. Augusto dos Anjos, sua vida, seu tempo e sua inserção na Literatura nacional

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884, no Engenho Pau d’Arco, então Vila do Espírito Santo — hoje município de Sapé, na Paraíba. Era filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, a Sinhá-Mocinha. Cresceu vendo a decadência de um engenho, à medida que antigas estruturas agrárias entravam em crise com a modernização da economia açucareira.[1]

Recebeu as primeiras instruções em casa mesmo, do pai, que era advogado, até ingressar no Liceu Paraibano. Em 1903, ingressou no curso de Direito da Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 1907. Contudo, apesar da formação jurídica, nunca exerceu efetivamente a advocacia.

Em vez da carreira jurídica, optou pelo magistério. Lecionou no Liceu Paraibano e, depois, por desentendimentos com autoridades locais — há relatos de conflito com o governo estadual — ele mudou-se para o Rio de Janeiro, onde continuou a lecionar, principalmente Geografia e Literatura.

Em 1912 publicou seu único livro em vida, intitulado Eu, que reúne grande parte de seus poemas. Casou-se em 1910 com Ester Fialho. O casal teve um único filho, chamado Guilherme dos Anjos, nascido em 1911. Ficou órfão de pai aos três anos e foi criado pela mãe.

Mais tarde, Augusto transferiu-se para Leopoldina (MG), onde assumiu a direção de um grupo escolar. A ida para Minas tem duas razões principais, econômicas e profissionais, e nada teve a ver com saúde (busca de ares melhores, como ainda dizem algumas fontes). Ele buscou estabilidade financeira, na diretoria dessa escola, um cargo público, estável e melhor remunerado do que qualquer função que exercera até então na Paraíba ou no Rio. O convite foi feito por influência de João Luís Alves, então Secretário do Interior de Minas (e depois Ministro da Justiça). Ele aceitou imediatamente, pois enfrentava dificuldades financeiras graves no Rio de Janeiro, que nunca lhe oferecera uma colocação sequer razoável.

Entre 1910 e 1914, já vivendo no Rio, Augusto trabalhou como professor particular; lecionou em colégios privados pequenos; chegou a colaborar com o Jornal do Brasil, mas não conseguia renda estável. A proposta mineira, portanto, representava segurança para sustentar a esposa e o filho.

Ademais, a mudança foi vista por ele como um recomeço. Há cartas e depoimentos indicando que Augusto acreditava que a vida interiorana lhe permitiria tranquilidade para escrever e lecionar — algo que a vida difícil e caótica no Rio não permitia.

Porém ele morreu pouco depois de chegar, em agosto de 1914. Faleceu já aos 12 de novembro do mesmo ano, com apenas 30 anos de idade, vítima de pneumonia lobar dupla, agravada por asma crônica. Ele estava debilitado e pegou uma infecção pulmonar grave ao assumir o cargo e fazer viagens pelo interior mineiro em condições precárias.

Assim, viveu uma trajetória curta, mas marcada por uma intensa vida intelectual — entre a Paraíba, Recife, Rio de Janeiro e Minas Gerais — e pela transição de uma infância vivida em meio a uma aristocracia rural decadente para uma formação erudita e urbana.

A obra de Augusto dos Anjos é marcada por um vocabulário esdrúxulo, com temas que quase sempre têm a ver com morte, decadência, corpo, decomposição — em tom existencialista, cientificista e ironicamente pessimista — o que o distingue tanto dos parnasianos e simbolistas de sua época.

Por isso, sua produção, difícil de enquadrar em qualquer movimento, ou é posta sob o rótulo vazio de pré-modernista ou, simplesmente, é vista como precursora do pré-modernismo no Brasil.

2. A Árvore da Serra: ecologia, tragédia, ou alegoria jurídica da culpa?

Reproduz-se primeiro o célebre poema:

A Árvore da Serra

As árvores, meu filho, não têm alma!

E esta árvore me serve de empecilho…

É preciso cortá-la, pois, meu filho,

Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?

Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!

Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…

Esta árvore, meu pai, possui minh’alma!…

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:

«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»

E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,

O moço triste se abraçou com o tronco

E nunca mais se levantou da terra!

O poema já foi interpretado como metáfora ecológica, profecia ambientalista pré-moderna ou mesmo — à luz da tradição oral paraibana — como alegoria de um crime de sangue, segundo a hipótese biográfica que associa a árvore à jovem Francisca, filha de um empregado da fazenda da família, o engenho Pau D’Arco, alegadamente assassinada por ordem da mãe do poeta. Tal versão aparece, por exemplo, em A árvore da serra, poema ecológico? Augusto dos Anjos, o poeta do pai, de Soares Feitosa, artigo online de 1997.[2]

Esse autor — que teria obtido as informações que divulga com amigos ligados à poesia, como Hélio Pólvora e, especialmente quanto a esse ponto, Evandro Ayres, ainda faz o seguinte e importante registro:

“a mãe do poeta (…) é que teria mandado matar a jovenzinha, Francisca, filha do vaqueiro. Que o pai de Augusto era um babaca, dominado pela mulher, que ele, o pai, se omitira, mas ficara do lado do filho; daí a presença sempre muito grata do pai na obra do poeta; daí o desamor pela mãe, ausente em toda a obra.

Nada disso é comprovado historicamente, mas o imaginário nordestino acolheu essa leitura como quem abraça um mito fundador.

Menciona Soares Feitosa, ainda, uma edição não comercial da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sobre a obra do poeta,[3] trabalho que ele afirma haver vasculhado, havendo nele encontrado “mais de trinta referências ao pai”, enquanto, em relação à mãe, apenas coisas como:

Tu não és minha mãe, velha nefasta!

Com o teu chicote frio de madrasta

Tu me açoitaste vinte e duas vezes…

Por tua causa apodreci nas cruzes,

Em que pregas os filhos que produzes

Durante os desgraçados nove meses![4]

Os versos acima, do Poema negro, reforçaram em Soares Feitosa a ideia, que ele repisa, de que Augusto dos Anjos foi o poeta do pai.

Fernando Melo, porém —apesar de reconhecer que Sinhá-Mocinha exercia uma tirania materna[5]—parece concordar com Humberto Nóbrega, que combate “a erronia vulgarizada de que Augusto era sem grande atenção a quem lhe dera o ser”.[6]

Retomando o tema, mas contando os fatos de modo um tanto diferente, o jurista e escritor paraibano Rogério Fialho Moreira, em sua biografia O vigário de Araruna, diz que Sinhá-Mocinha, mãe de Augusto, preocupava-se em conseguir um bom casamento para ele, que porém era incansável na tarefa de destruir os seus relacionamentos com as moças simples do lugar:

São conhecidos os seus amores por Filomena, com quem teve um filho (Manuel dos Anjos, que chegou a Capitão da Polícia Militar); por Amélia, adolescente “da cozinha” do engenho, que teve de casar-se às pressas com um empregado, para encobrir o “mal” que lhe causara o senhorzinho e, ainda, por uma pobre moça retirante, recolhida ao engenho Pau D’Arco, que teria sofrido um aborto de filho do poeta, após receber surra que lhe teria mandado aplicar Sinhá-Mocinha. Há, ainda, insinuações sobre suposto caso incestuoso entre o vate paraibano e a sua irmã mais velha, Francisca, conhecida por Iaiá.[7]

Francisca, então, não era a vítima de assassinato. Era a irmã, envolvida em incesto com Augusto, que haveria sido — ao menos nessa fase de sua juventude — um predador sexual desenfreado. Não teria havido o homicídio, mas apenas uma surra que terminou em aborto,[8] porém tudo, de qualquer modo, a mando da implacável Sinhá-Mocinha.

Fernando Melo diz que o conflito entre pai e filho, exposto no soneto — concordando com R. Magalhães Jr. E Horácio de Almeida — não se ajusta às manifestações de afeto entre e Augusto e Alexandre, registradas na obra do primeiro. Talvez ele estivesse se referindo a mãe. O pai jamais teria mandado surrar a namorada do filho[9]. Mas Sinhá-Mocinha, “exasperada contra a moça que desencabeçara o filho, mandou aplicar-lhe uma surra” tão brutal “que a jovem de pronto abortou e logo morreu”, como disse em livro Ascendino Freire.[10]

Não há como saber, sem uma pesquisa mais profunda do que a que posso me permitir, qual das versões é a correta. O que parece mesmo é que provavelmente existiu uma história escabrosa por trás de A árvore da serra. Tanto Feitosa[11] como Fialho[12] concordam que a comparação entre o cedro e o junquilho (presente no terceiro verso do segundo quarteto), sendo o primeiro um vegetal despido de maior significância, enquanto o segundo é uma árvore de madeira apreciada, constitui uma clara alusão à extração rústica da namorada de Augusto e a nobreza das pretendentes que a mãe lhe desejava.

Seja como for, o caso é, ou melhor, foi dramático.       

Neste artigo, porém, destaco uma leitura mais jurídico-antropológica. O pai (ainda que por instigação materna) age como soberano doméstico: sua decisão é unilateral, fundada no poder patriarcal sobre a terra, a família e o destino. O filho reivindica o valor intrínseco da vida — humana e vegetal —, base ética de direitos posteriores como o Direito Ambiental e o estatuto jurídico do bem comum.

O ato de cortar a árvore funciona como sentença irrevogável, cuja execução produz uma vítima colateral: o filho, que se identifica ontologicamente com o objeto destruído.

O gesto derradeiro — abraçar o tronco tombado — é imagem de solidariedade radical, mas também de morte civil: um sujeito cuja identidade jurídica (e emocional) é desfeita pela violência autorizada por outro.

Assim, A Árvore da Serra se constitui numa das mais fortes imagens poéticas brasileiras da relação entre poder, propriedade, violência e perda. Seu drama jurídico é o da decisão irreversível, do abuso do arbítrio — e da culpa não confessada explicitamente.

3. A prostituição, o contrato social e a miséria punitiva: As Cismas do Destino

Vários trechos de As Cismas do Destino — um poema tão longo e tão rico que comentá-lo a fundo daria um livro inteiro —, revelam uma crítica contundente às estruturas sociais e morais do Brasil, em especial da época em que viveu Augusto dos Anjos.

Destaco:

Iam depois dormir nos lupanares

Onde, na glória da concupiscência,

Depositavam quase sem consciência

As derradeiras forças musculares.

Aqui, Augusto descreve o ciclo econômico-sexual de trabalhadores exauridos. A crítica jurídica aflora em duas perspectivas: de um lado, o Direito do Trabalho e a exploração, pois o poema retrata homens cuja força muscular (sua “moeda”) é consumida pela economia da miséria; do outro, o Direito Penal e o moralismo histórico: o lupanar (o covil das lobas, na origem latina da palavra!) é simultaneamente lugar de vício e de repressão moral; o poeta denuncia a hipocrisia de um sistema que criminaliza a mulher trabalhadora do sexo, mas tolera a atitude do homem que usa seus serviços.

Mais adiante:

Prostituição ou outro qualquer nome,

por tua causa, embora o homem te aceite,

É que as mulheres ruins ficam sem leite

E os meninos sem pai morrem de fome!

O poeta opera aqui uma espécie de acusação estrutural: não é a prostituta que deve responder; é a engrenagem social que a produz. Uma antecipação do discurso moderno sobre criminologia crítica, segundo o qual o delito não é apenas fruto da ação individual, mas de condições materiais e outras do entorno que o cerca.

Entretanto, como homem do seu tempo, ele não escapa de um tanto de preconceito ao mencionar as “mulheres ruins” que ficam sem leite…

E ainda:

Eu puxava os cabelos desgrenhados

Como o Rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,

No estentor de mil línguas insurrectas,

O convencionalismo das Pandectas

E os textos maus dos códigos recentes!

Aqui surge o poeta-jurista.

Ao recusar as Pandectas (do códex justinianeu) e ao mesmo tempo profligar os “códigos recentes”, Augusto mostra que estava a par do fenômeno que acontecia à época em que o poema foi escrito (provavelmente, por volta de 1903), quando, na Europa, o velho Direito Romano deixava de ser norma positiva.

Basta recordar que as pandekten vigeram na Alemanha, junto com as normas consuetudinárias do Direito Germânico até o advento do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), ou código civil daquele país, exatamente em 1900, depois de um grande debate entre várias correntes jurídicas, no qual se destacou o historicismo de Friedrich Karl von Savigny, o qual entendia que o Direito integrava o Volksgeist (espírito do povo) e por isso não devia ser engessado numa norma escrita única.

E essa luta entre a inadequação do Direito velho e a suposta baixa qualidade dos textos normativos novos nós vemos ressurgir sempre que se discute a reforma de alguma codificação importante. Como exemplo, tivemos tal discussão em 2002, quando o Código Civil de Bevilaqua foi substituído pelo atual, e a temos agora, momento em que uma reforma ao estatuto vigente está no Congresso. São como que ondas cíclicas do Direito, que Augusto dos Anjos, como poucos, captou.

Ademais, ele denuncia, nesse poema, pelo menos do ângulo jurídico: a insuficiência da legislação para lidar com a realidade humana; a defasagem entre norma e vida; a incapacidade do direito de conter a tragédia.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que poucos poetas brasileiros ousaram insultar o próprio edifício jurídico com tanta proficiência, clarividência e teatralidade — literalmente, pois até o Rei Lear é chamado à baila — shakespeariana.

4. O Lupanar: Direito Penal, sexualidade e biopolítica

O Lupanar

Ah! Por que monstruosíssimo motivo

Prenderam para sempre, nesta rede,

Dentro do ângulo diedro da parede,

A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:

É o grande bebedouro coletivo,

Onde os bandalhos, como um gado vivo,

Todas as noites, vêm matar a sede!


É o afrodístico leito do hetairismo,

A antecâmara lúbrica do abismo,

Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora

Matar a última força geradora

E comer o último óvulo do ventre!

Neste poema, Augusto volta a tratar do bordel, mas aqui o descreve como instituição, quase como espaço jurídico não declarado — um local de confinamento e vigilância do desejo.

Do ponto de vista jurídico, despontam, dadas as circunstâncias da falta de liberdade sexual da época, algumas óbvias conclusões, abaixo alinhadas:

O lupanar era uma espécie de zona de exceção moral, tolerada, mas não reconhecida oficialmente.

A “alma presa” pode ser lida como crítica aos mecanismos biopolíticos de controle da sexualidade — e aí temos Foucault antecipado pela poesia de Augusto dos Anjos.

Depois, o bordel funcionava como um “bebedouro coletivo” (verso do segundo quarteto): convertia pessoas em recursos de consumo. Eis a clara denuncia o que hoje se chamaria mercantilização do corpo, ou, em linguagem feminista, objetificação da mulher.

A imagem final do poema (no último terceto) — “comer o último óvulo do ventre” — é alegoria brutal da expropriação da autonomia reprodutiva, tema político-jurídico até hoje atualíssimo.

5. A um Carneiro Morto: Direito Animal, sacrifício e responsabilidade moral

A um carneiro morto

Misericordiosissimo carneiro

Esquartejado, a maldição de Pio

Décimo caia em teu algoz sombrio

E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio

Que te vender as carnes por dinheiro,

Pois, tua lã aquece o mundo inteiro

E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia do Juízo,

Talvez perdoasses os que te mataram!

Este poema impressiona por antecipar discussões de Direito Animal, ética do consumo e compaixão por seres sencientes. O poeta condena: o comerciante (explorador econômico); o algoz (executor da violência); e o comprador (beneficiário).

É uma como que teoria primitiva da responsabilidade solidária, muito antes de seu desenvolvimento jurídico moderno.

A imagem final (no derradeiro terceto, que não transcrevemos) — o carneiro que perdoaria no Dia do Juízo —, além do evidente paralelismo católico com o agnus Dei, o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, ecoa debates atuais sobre direito à vida, dignidade animal e ética do abate.

6. Ricordanza della mia gioventù: escravidão, propriedade, furto e culpa

            O título em italiano deve ser traduzido para algo como “lembrança da minha infância”. Gioventù, aí, não é propriamente juventude. Essa palavra, na língua de Dante, tem um espectro significativo um pouco distinto do de sua homóloga em português. Em geral, corresponde, sim, ao nosso “juventude”. Mas, poeticamente, pode dizer algo diverso. Parece-me o caso.

O soneto é assim:

Ricordanza della mia gioventù

A minha ama de leite Guilhermina

Furtava as moedas que o doutor me dava.

Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava…

Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava

Suscetibilidades de menina:

“— Não, não fora ela! —” E maldizia a sua sina,

Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora em minha cama,

Que a mim somente cabe o furto feito…

Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha…

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,

Eu furtei mais, porque furtei o peito

Que dava leite para a tua filha!

Este é um dos mais belos momentos éticos da obra de Augusto. Trata de uma escrava (e ama de leite do poeta), Guilhermina, que furtava as moedas que “o doutor”[13] (figura que também, na hipótese, representa o patriarcado e o patrimonialismo) lhe dava, e por isso recebia repreensões da mãe de Augusto.

Ele — e aí fugindo dos preconceitos racistas vivíssimos da época, quando a escravatura, que estava em vigor ao tempo da sua primeira infância, e, à época da escritura do soneto, devia ter sido abolida fazia muito pouco tempo — inverte completamente a noção jurídica do furto nesse caso concreto.

A ama furta as moedas, mas o eu lírico, em contrapartida, declara-se agente de um “furto moral” muito maior, pois ingeriu o leite destinado à filha da ama, e assim subtraiu o que era vital para a própria existência desta, pondo-a em risco.

É um gesto de responsabilidade retrospectiva, na fronteira entre culpa jurídica e culpa moral. Trata-se, literariamente, de uma aula sobre autorreconhecimento da vantagem indevida — um conceito que o Direito Penal Econômico atual chamaria de apropriação de recursos alheios essenciais à vida (ou mínimo existencial).

E evidentemente o poema, embora não o diga expressamente, é uma terrível condenação ao regime escravagista, pois denuncia uma das inumeráveis situações de imoralidade que ele acarretava.

Para quem discutir isso, basta lembrar da expressão do terceiro verso do segundo quarteto: “maldizia sua sina”, em outras palavras, lamentava seu destino. Que destino, que sina? O de cativa, de escravizada, não há o que duvidar.

7. O Canto dos Presos: criminologia, sofrimento penal e música da desesperança

O Canto dos Presos

Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,

O epitalâmio da Suprema Falta,

Entoado asperamente, em voz muito alta,

Pela promiscuidade dos reclusos!

No wagnerismo desses sons confusos,

Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta,

Uiva, à luz de fantástica ribalta,

A ignomínia de todos os abusos!

É a prosódia do cárcere, é a partênea

Aterradoramente heterogênea

Dos grandes transviamentos subjetivos…

E a saudade dos erros satisfeitos,

Que, não cabendo mais dentro dos peitos,

Se escapa pela boca dos cativos!

O cárcere aqui é apresentado como um organismo que uiva. O poema revela o horror do confinamento, tema recorrente na literatura penitenciária, e o que é descrito como o “epitalâmio[14] da suprema falta” — uma espécie de casamento ritual entre crime e punição — sugerindo que a prisão finda por celebrar a própria violência que pretende coibir.

A “prosódia do cárcere” (primeiro verso do primeiro terceto) denuncia a linguagem deformada da exclusão, que hoje em dia chega até a ser tema de estudos, como jargão específico dos segregados, onde muitas vezes a subjetividade se anula, pela despersonificação dos internos.

O estado das prisões — mais de um século antes da declaração de seu estado de coisas inconstitucional pelo Supremo — já transparece, quando Augusto critica a “promiscuidade” em que os internos são mantidos (último verso do primeiro quarteto) e, mais além, quando se vale da terrível expressão para qualificar o quadro: “a ignomínia de todos os abusos”.

É, enfim, uma crítica à inefetividade da pena, próxima da visão de Cesare Beccaria: punições atrozes nada produzem além de mais violência.

8. Mãos: criminalidade, corpo e determinismo

Mãos

Há mãos que fazem medo

Feias agregações pentagonais,

Umas, em sangue, a delinquentes natos,

Assinalados pelo mancinismo,

Pertencentes talvez…

Outras, negras, a farpas de rochedo

Completamente iguais…

Mãos de linhas análogas e anfratos

Que a Natureza onicriadora fez

Em contraposição e antagonismo

Às da estrela, às da neve, às dos cristais.

Mãos que adquiriram olhos, pituitárias

Olfativas, tentáculos sutis,

E à noite, vão cheirar, quebrando portas

O azul gasofiláceo silencioso

Dos tálamos cristãos.

Mãos adúlteras, mãos mais sanguinárias

E estupradoras do que os bisturis

Cortando a carne em flor das crianças mortas.

Monstruosíssimas mãos,

Que apalpam e olham com lascívia e gozo

A pureza dos corpos infantis.

Neste poema se vê um veemente e vigoroso repúdio a vários crimes, em especial de caráter sexual, culminando com o horrendo (e merecido) apodo de monstruosíssimos para os atos libidinosos contra crianças.

Nota-se o vocabulário de Lombroso (“delinquente nato”, “mancinismo”, ou uso da mão esquerda), o qual evidencia o contato do poeta com a criminologia positivista — hoje ultrapassada, mas predominante em sua época.

Juridicamente, o poema permite uma leitura crítica. Augusto descreve a teoria lombrosiana, mas a exagera a tal ponto que atinge o grotesco: as mãos que “cheiram portas” à noite (tateiam) e “apalpam com lascívia e gozo a pureza dos corpos infantis” representam o medo social daqueles atos criminosos que maior repulsa causam às pessoas normais.

Mas a monstruosidade do texto denuncia indiretamente a teratologia do determinismo penal, que, se está completamente fora de moda como teoria científica, às vezes não o está nas mentalidades, e se revela nos tantos preconceitos.

É possível, pois, ler Mãos como sátira trágica das teorias que tentavam definir o criminoso pela anatomia — algo que o Direito Penal moderno rejeita, mas que algumas pessoas, inconsciente ou até conscientemente, continuam a fazer.

Até no exagero das abjeções, Augusto dos Anjos consegue raiar pelo sublime.

9. O Condenado: expiação, rito punitivo e natureza como testemunha

O Condenado

Alma feita somente de granito,

Condenada a sofrer cruel tortura

Pela rua sombria d’amargura

—Ei-lo que passa — réprobo maldito.

Olhar ao chão cravado e sempre fito,

Parece contemplar a sepultura

Das suas ilusões que a desventura

Desfez em pó no hórrido delito.

E, à cruz da expiação subindo mudo,

A vida a lhe fugir já sente prestes

Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.

O mundo é um sepulcro de tristeza.

Ali, por entre matas de ciprestes,

Folga a justiça e geme a natureza.

Aqui o direito é puro contraste: a Justiça “folga”, isto é, se satisfaz — portanto, cumpre sua função, aplica a pena, silencia o criminoso. Mas a natureza “geme”, ou seja, sofre — lamenta a destruição da vida, seja do culpado, seja das ilusões humanas destruídas, já pelo crime, já pelo castigo.

Vale lembrar que o mote folga a justiça e geme a natureza é do grande poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage, que aqui no Brasil quase só tem fama pelos seus versos satíricos, mas que foi um dos maiores poetas (em todos os sentidos) portugueses e, sem dúvida, o maior nome do arcadismo daquele país.

Este é um dos mais pungentes comentários literários brasileiros sobre a pena de morte (ainda legal na época em que o poeta viveu para crimes militares e em períodos excepcionais), que ressoa nas menções a “sepultura” (segundo verso do segundo quarteto), “a vida prestes a lhe fugir” (segundo verso do primeiro terceto) e “ciprestes”, árvores típicas de cemitérios (segundo verso do segundo terceto).

O condenado é “alma de granito”, mas sua rigidez em verdade deve ser somente interna: por fora, é apenas um homem esmagado pela marcha ritual da punição, que não é apenas jurídica: o poeta consegue captar como ninguém a reprovação da sociedade ao delinquente, chamando-o com a tremenda pecha de “réprobo maldito” (logo no primeiro quarteto, no último verso deste).

Conclusão: o Direito que sangra nos versos

Há mais Direito na poesia de Augusto dos Anjos. No entanto, os exemplos que escolhemos bastam para sentirmos que ela é uma espécie de tribunal metafísico onde o ser humano é simultaneamente réu e vítima, a natureza é corpo de delito, a moral é sentença inapelável, e o mundo, enfim, é cenário de infindáveis autos de culpa.

Em A Árvore da Serra, o Direito se revela numa tragédia familiar convertida em luto universal. Nos demais poemas, surge como crítica à prostituição, à miséria, à escravidão, ao cárcere, ao determinismo penal, à violência econômica, às hierarquias sociais e à própria incapacidade da lei de compreender o sofrimento humano.

Nenhum jurista que leia Augusto dos Anjos sai ileso. Ao mesmo tempo, nenhum poeta que o leia pode ignorar que ali, sob a superfície das palavras estrambóticas e das construções gramaticalmente raras, pulsa uma pergunta eterna: — que lei é capaz de julgar o desamparo, a dor, a fragilidade do ser humano?

 


[1] MELO, Fernando. Augusto dos anjos: uma biografia. Ideia, João Pessoa, 2001, pp. 21-56, trata de tudo isso em detalhes. Destaque para a p. 40, sob a epígrafe A agonia do Império; 41, Miséria dourada; 43, A decadência do engenho, e as pp. 44-45, Doença do Dr. Alexandre.

[2] In: Jornal de Poesia, pp. 3-12 (onde está o trecho citado).  Disponível em: https://drive.google.com/file/d/10FobX4oeMH9M_jNfCVQrhw3NF1lLEiOi/view. Acesso em: 4/12/2025.

[3] ANJOS, Augusto de Carvalho Rodrigues dos. Obra completa. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=130252. Acesso em: 4/12/2025.

[4] FEITOSA, Francisco José. Ob. cit., p. 13.

[5] Título do capítulo III de sua obra já citada, pp. 47 e ss.

[6] Idem, p. 47.

[7] MOREIRA, Rogério Fialho. O vigário de Araruna. MCV/Forma, João Pessoa, 2023, p. 236. Ao mencionar o incesto, a passagem remete em nota ao livro de Fernando Melo, já aqui citado, Augusto dos Anjos, uma biografia, às pp. 57 e ss., baseado em artigo de José Caó Vinagre em O Cruzeiro, de 30/10/1974, e na biografia romanceada A última quimera, de Ana Miranda, editada pela Cia. das Letras. Refere, nessa passagem, por fim, texto de William Costa, que saiu em A União (suplemento Correio das Artes) de 5/11/2000, a sustentar que o suposto incesto entre Augusto e a irmã continua sendo “uma história muito mal contada”. Mas Fernando Melo, embora “embora com um olho no padre e outro na missa” acha mesmo que o incesto ocorreu (ob. cit., p. 71).

[8] FEITOSA, ob. cit., p. 9, também menciona aborto, mas fala ainda em morte da grávida.

[9] MELO, Fernando. Ob. cit., p. 52

[10] MELO, Fernando. Ob. cit., p. 53.

[11] Ob. cit., pp. 6-7.

[12] MOREIRA, ob. cit., p. 237.

[13] Conforme Fernando Melo, em Augusto dos Anjos: uma biografia. Ideia, João Pessoa, 2001, p. 33, na nota de rodapé n. 3, “Doutor, com D maiúsculo” era o “nome portentoso do Dr. Aprígio de Melo, que era padrasto de Sinhá-Mocinha”, mãe de Augusto dos Anjos. O pai do poeta era primo dele, como consta do mesmo livro, à p. 37, e eles tinham ideologias conflitantes. O doutor era monarquista e escravagista; Alexandre, pai de Augusto, republicano e favorável à abolição, embora não fosse sectário (pp. 39-40).

[14] Hino nupcial; canto ou poema composto para celebrar um casamento.


Referências

ALMEIDA, Horácio de. O poeta Augusto dos Anjos. João Pessoa: A União, 1959.

ANJOS, Augusto de Carvalho Rodrigues dos. Obra completa. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=130252. Acesso em: 4/12/2025.

Augusto dos Anjos (1884-1914). Verbete na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin – USP. Disponível em: https://www.bbm.usp.br/en/Selection-BBM-digital/augusto-dos-anjos-1884-1914/. Acesso em: 4/12/2025.

BARBOSA, Francisco de Assis. Vida e obra de Augusto dos Anjos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1978.

BEZERRA, Carlos Newton Júnior. Augusto dos Anjos: biografia e interpretação. Recife: Bagaço, 2000.

CASCUDO, Luís da Câmara. Entrada “Augusto dos Anjos”. In: Dicionário do Folclore Brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

COUTINHO, Eduardo; MOURA, Fátima (Orgs.). Augusto dos Anjos: o poeta e seu tempo. João Pessoa: A União, 1994.

FEITOSA, Francisco José. A árvore da serra, poema ecológico? Augusto dos Anjos, o poeta do pai. In: Jornal de Poesia. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/10FobX4oeMH9M_jNfCVQrhw3NF1lLEiOi/view. Acesso em: 4/12/2025.

FRAZÃO, Dilva. Biografia de Augusto dos Anjos. eBiografia. 26/10/2020. Disponível em: https://www.ebiografia.com/augusto_anjos/. Acesso em: 04 dez. 2025.

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Augusto dos Anjos: sua vida, sua obra, seu tempo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

MELO, Fernando. Augusto dos Anjos: uma biografia.

MIRANDA, Ana. A última quimera. Cia das Letras, São Paulo, 2013.

MOREIRA, Rogério Fialho. O vigário de Araruna. MCV/Forma, João Pessoa, 2023.

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